O Yoga não é a filosofia do “o quê” ou do “quanto”, mas do “como”. O “como” você faz os exercícios determinará se é um asana ou se é ginástica. O “como” você se deita definirá se é só um descanso ou relaxamento. O “como” você vive indicará se será feliz ou miserável. Não existe nos textos de Yoga uma palavra que possa ser traduzida como felicidade do modo como costumamos nos referir no Ocidente. Do que conheço dos Yoga Sutras de Patañjali, penso que este estado que buscamos na prática do Yoga é diferente do conceito ocidental de felicidade. Quando se refere ao caminho a ser seguido pelo praticante de Yoga, Patañjali destaca o contentamento (santosha).
Da forma como é colocado, parece tão simples, como se fosse uma opção nossa escolher entre ser feliz ou miserável. Se é simples eu não sei, mas não tenho dúvida de que é uma opção nossa. Por exemplo: Quem mora em São Paulo, como eu, não tem a escolha de pegar trânsito ou não, hoje temos trânsito a qualquer hora e dia. Mas cada um pode optar se ficará irritado no trânsito ou não. Você pode achar que tudo está contra você ou que a “fechada” que você levou do carro da frente foi de propósito. Depende de você se quer trânsito com gastrite ou trânsito sem gastrite.
Afinal, ter raiva de alguém faz mal para quem? Estamos falando da nossa saúde. Não ter raiva faz bem para si mesmo. Ouvi uma vez uma frase interessante: “ter raiva de alguém é como tomar veneno e querer que faça mal para o outro”. A fórmula para o contentamento é: C= A/E. Ou seja, contentamento é igual às nossas aquisições (A) divididas por nossas expectativas (E). Portanto, quanto mais expectativa, menos contentamento. Não significa que não devemos ter planos e projetos, significa que não temos de fazer as coisas esperando que o mundo nos aplauda e nos veja como as pessoas maravilhosas que nós achamos que somos. Você já ouviu este tipo de frase? “Fiz tudo por ele e agora recebo isto de volta”. É esse tipo de expectativa a que me refiro. A forma como reagimos às informações que chegam a nós é determinante para a saúde e bem-estar.
A nossa resposta emocional é educável e modificável – tudo é aprendido e pode ser treinado. Patañjali sugere que antes da primeira manifestação de um pensamento inadequado, pensemos exatamente de forma contrária. No momento em que um pensamento destrutivo quer se instalar em nossa mente, é necessário desenvolvermos outro pensamento no sentido oposto. Em vez de desenvolver sentimentos de raiva contra alguém que fez algo que você não gostou, procure estabelecer sentimentos de compaixão antes que o ódio se instale. Não adianta querer ser hipócrita e dizer: “não vou ficar com raiva deste desgraçado”. Se o sentimento ruim já se instalou, fica difícil reverter. Existe um momento certo para tomar essa decisão e este momento está na raiz do pensamento ruim. Antes dele se desenvolver. Uma das coisas mais importantes de percebermos quando entramos em contato com outras culturas são outras possibilidades de resposta emocional. Se na nossa sociedade ainda vigora o “temos de levar vantagem em tudo”; “não levo desaforo para casa”; “o mundo é dos espertos” e outras bobagens, tenha certeza de que não são todas as culturas que pensam assim.
O preço das bananas
Na primeira viagem que fiz à Índia, em 1979, me ocorreu um fato interessante: estava em um trem de terceira classe, em uma velocidade que dava desgosto e um calor insuportável. Um senhor indiano muito simples, que estava sentado ao meu lado, queria conversar e me cutucando perguntava de onde eu era. Seu inglês era ruim, pior que o meu, e quando eu respondia, ele não entendia. Nossa conversa não prosperava e com o desânimo provocado pelo calor e a velocidade do trem, fechei os olhos e fingi que dormi. Fui decididamente antipático com o “nativo” que queria ser gentil. Quando chegou ao seu destino, e, diga-se de passagem, uma vila que era menor que as dimensões do trem, o indiano me cutucou despediu-se de mim e, eu, para não correr o risco de recomeçar o diálogo, continuei com minha farsa. Ele era realmente pobre, aquela região era muito simples, mas ele fez questão de correr até uma senhora que vendia bananas, comprou cinco e as quis me oferecer pela janela do trem.
Morrendo de vergonha eu inicialmente recusei, dizendo que sabia que as frutas eram caras naquela região e que ele as levasse para os filhos. Com isto, só piorei a situação e ele me disse: “por favor, aceite”. Teimoso, eu ainda tentei outra saída para diminuir meu remorso e disse: “fico com duas, uma para minha esposa e outra para mim”. Ele insistiu e repetiu: “por favor”. E eu nunca mais me esqueci. Digo que até hoje carrego estas bananas. Tenho certeza que as ofereceu com amor e carinho para alguém que ele nem conhecia pudesse pensar bem de seu país e sua gente. Ele tinha o direito de me chamar de estrangeiro prepotente, mas me deu uma lição que nem mesmo os ditos “mestres” que tanto imaginamos encontrar na Índia conseguem dar. Sua resposta emocional foi uma grande lição para mim. O conceito de felicidade da cultura de onde o Yoga se originou atribui a cada um a responsabilidade pela aquisição deste estado. A felicidade vem de dentro e não de fora. Não é o mundo, mas a maneira como o vemos que determina o nosso estado emocional.
Tudo tem um lado bom
Conta uma história indiana que um rei queria caçar e convidou seu amigo comandante da guarda para ir com ele. Enquanto limpavam as facas e lanças, o rei cortou o dedo. Imediatamente seu amigo vem com a frase: “tudo tem um lado bom”. O rei discorda dizendo que não há nada de bom em cortar o dedo e começam uma discussão que termina com o comandante da guarda preso e o rei caçando sozinho. No meio da floresta, o rei é aprisionado por uma tribo de nativos que justamente procuravam uma vítima para um ritual de sacrifício. Para oferecer um corpo à divindade, é preciso lavá-lo primeiro e foi então que perceberam que o prisioneiro estava com um corte e que não seria adequado oferecer um corpo com “defeito”.Dispensaram o rei, que foi embora pensando em tudo o que lhe aconteceu. Ao chegar no castelo, foi direto ao calabouço pedir desculpas. Depois de contar tudo ao amigo perguntou: “Mas qual foi o lado bom em eu tê-lo colocado na cadeia”? O comandante respondeu: “Puxa, rei, tivesse eu ido com você, percebendo que você não servia para o ritual, eles me matariam”. Não me refiro a um otimismo cego e ingênuo, mas ao fato de sermos mais positivos. Compete a cada um ver o lado bom das coisas.
Qualidade de vida X Vida com qualidade
O pensamento indiano não criaria conceitos como o de “qualidade de vida”, por exemplo. É comum ouvirmos que para obter qualidade de vida é necessário o equilíbrio entre trabalho e descanso, boa alimentação, exercícios físicos e não fazer dívidas, entre outros fatores externos. Conheço tanta gente que tem tudo isto e não tem felicidade. Por outro lado, conheço gente que não tem nada disso, mas tem uma alegria interna de dar inveja. O pensamento indiano seguramente trocaria o que chamamos de qualidade de vida por “vida com qualidade”. Será que a nossa vida tem qualidade? Quem dá qualidade e sentido à nossa vida? Qual a vida que vale a pena? Sempre que penso nisso penso na imensa qualidade que teve a vida de Madre Tereza de Calcutá. Trabalhava muito e com a saúde precária, mas sua vida valeu a pena. Se qualidade de vida está mais ligada ao fazer o que se gosta, vida com qualidade está ligada ao gostar do que se faz. Compete a cada um dar valor ao que tem em vez de olhar para o que está faltando.
Intitulamos-nos homo sapiens, mas às vezes é preciso rever este nosso sapiens. Hoje em dia as pessoas se matam porque denominam Deus de formas diferentes, e até porque torcem para times de futebol diferentes. Nossos valores estão equivocados. Religião e futebol são coisas boas e podem ajudar desde que sirvam para unir e não para separar. Com toda nossa sapiência, parece que temos de perder para dar valor. Somente depois de ter ficado desempregado por um ano é que alguém acorda feliz porque vai trabalhar em uma segunda-feira. Raramente ficamos felizes porque estamos saudáveis. Somente depois de ter ficado doente é que reconhecemos o quanto é importante ter saúde.
Para concluir, Patañjali afirma que para se adquirir felicidades supremas são necessários prática e desapego. Prática significa atenção constante para não se esquecer do que realmente é importante na vida, e desapego é simplesmente reconhecer que não temos nada. A sensação de posse é virtual, é apenas a permissão do uso temporário de algo que achamos que é nosso, mas que mais cedo ou mais tarde ficaremos sem. Assim, usufrua, viva o presente, lembre que fomos convidados para uma grande festa, mas dela, não levaremos nada de material. Disse uma vez a professora Lia Diskin da Palas Athena: “Tanto o céu como o inferno são estados da alma que nós
próprios elegemos em nosso dia-a-dia”. Felicidades...
*Marcos Rojo é professor da Universidade de São Paulo e coordenador do curso de pós-gradução de Yoga da UniFMU
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